“O
mais comum é a pessoa retrair-se quando
é confrontada com um crime, e sair do
local” VASCO SOARES,
PSICÓLOGO CLÍNICO
José Carlos
Pereira ainda sonha com o que lhe aconteceu
há três semanas. Por vezes está
dentro do banco, outras dá consigo na
agitação da sala de comando policial
a falar de pistolas e de pontos de mira. Tudo
está como se lembra: os quadros com os
nomes das testemunhas na parede, agentes por
todo o lado e ele, um vendedor de automóveis,
47 anos, com três filhos, a ajudar a polícia.
No dia 4 de Outubro, saiu de casa para pagar
uma prestação e acabou como testemunha
do mais mediático assalto dos últimos
meses. Esteve pouco mais de 20 segundos no Banco
Espírito Santo (BES) de Setúbal
onde um homem armado sequestrou quatro pessoas
durante mais de 13 horas - mas nunca mais os
vai esquecer.
"À
excepção do silêncio, parecia
um dia normal no banco. Havia dois funcionários
no atendimento privado e à frente deles,
de costas para mim, estava uma pessoa alta,
ligeiramente curvada, com o capuz do casaco
na cabeça. Havia um saco na mesa.
Quando me aproximei
do balcão, parei atrás de um rapaz.
E ele disse-me: "Não vê que
aquele senhor tem uma arma na mão? Acto
contínuo, virei-me para o lado, vi a
pistola, era prateada, e já nem respondi
ao moço."
Até à
primeira porta eram seis passos, mais um e estaria
na rua, em segurança. "Nem sequer
olhei para trás. Cheguei cá fora,
atravessei a estrada e andei até ao carro.
Só me virei nesse momento e vi o rapaz
também a sair. Liguei para a PSP, mas
eles já sabiam." Passaram mais de
20 dias desde aquele passo e José ainda
não sabe como conseguiu sair do banco.
"Sinceramente", diz, ajeitando-se
na cadeira, "agi por instinto". "Não
pensei em coisa nenhuma. Pura e simplesmente
saí dali. Hoje sei que podia ter levado
um tiro. Mas não aconteceu nada",
recorda.
A DECISÃO,
neste caso, a de sair imediatamente do local,
é tomada em segundos. Vasco
Soares , psicólogo clínico,
explica que a reacção de uma testemunha
de um crime não é racional, é
puramente emocional. "O mais comum é
a pessoa retrair-se e sair do local. Foi apanhada
de surpresa e não sabe como reagir. O
que conta é o seu historial", explica.
Ou seja, a experiência de vida.
Manuel João
vinha das traseiras do café, com a comida
dos pássaros, quando viu dois homens
engalfinhados junto ao balcão. Largou
tudo, avançou decidido por entre o fogão
velho, as talhas vazias, e os cravos de plástico,
e agarrou o que estava mais perto. "Arrastei-o
até à porta, mas antes de sairmos
ele disse: “Manuel João, estou mal disposto”.
Tinha um corte muito grande na barriga",
conta o dono da Adega do Saraiva. "Foi
o que o matou".
O homicídio,
a 7 deste mês, à hora de almoço,
deixou marcas em Ervidel, freguesia de Aljustrel
pouco habituada a ver crimes sangue. Os dois
homens, vítima e agressor, eram irmãos,
de 21 e 22 anos, nascidos na terra, e clientes
habituais de Manuel, o Parte-cadeiras que herdou
do pai a alcunha e a adega. "Vinham sempre
almoçar ao sábado e, nesse dia,
o pai e um amigo vieram com eles", conta
Manuel. Pediram febras, queijo, presunto e azeitonas.
No fim, tiveram uma discussão por causa
de uma carta de condução.
As vozes já
soavam alto quando o mais novo dos rapazes atirou
uma garrafa de licor à cabeça
do irmão. A seguir, levantou-se e saiu.
O pai e o amigo foram atrás. O ferido
ficou a limpar o golpe e o assunto parecia arrumado.
Manuel João ia fechar a adega, mas primeiro
trouxe as gaiolas para dentro e foi buscar a
alpista. Tinham passado poucos minutos. O rapaz
voltou. Discutiram outra vez e, junto ao balcão,
o da cabeça ferida, partiu uma garrafa
e golpeou o irmão. O tal a quem Manuel
João deitou a mão.
Nessa noite, já
depois de a GNR o ouvir, Parte-Cadeiras não
dormiu. Como nas noites das semanas seguintes.
Ainda não fica na adega sozinho, sai
com o último cliente e não dorme.
"Vejo tudo outra vez. Para adormecer, só
com comprimidos."
A 130 QUILÓMETROS
de Ervidel, em Setúbal, José Carlos
tem um problema parecido. O que ele não
esquece é a arma do crime a que assistiu
no BES. O psicólogo
Vasco Soares diz que é
"normal". "A pessoa tem de organizar
todos os acontecimentos da sua vida para antecipar
o futuro. Perante um acontecimento traumatizante,
não é capaz de o fazer racionalmente
e os sonhos são uma forma de o cérebro
organizar o sucedido."
Outra reacção
comum nas testemunhas é a avaliação
a posteriori das acções. "Quando
é apanhada na situação,
a pessoa pode ter uma fuga para a frente",
reconhece Vasco
Soares. "Não pesa
os riscos e tenta impedir o crime."
Nelson Palma conduzia
o seu táxi pelo centro de Faro quando
reparou, às 15h de 13 de Fevereiro de
2005, num homem em passo apressado, com um volume
debaixo do casaco.
Mais à
frente, uma mulher "idosa chorava rodeada
por um grupo de pessoas, que se limitavam a
olhar. "Senti que devia ir atrás
dele", recorda. Virou o carro, acelerou
e encurralou o assaltante, mas não foi
suficiente.
O homem escapou
e Nelson correu atrás dele até
o agarrar e recuperar a mala roubada. "Nem
me passou pela cabeça que pudesse ter
uma faca ou uma pistola." O taxista só
voltou a ver o assaltante em tribunal. "Olhei
para ele e ele para mim. Estava diferente. Creio
que hoje, se ele entrasse no táxi, não
o reconheceria." E não tem medo
de vingança. "Já me falaram
nisso, mas fiz o que era certo", diz a
testemunha.
Contudo, para
fontes policiais contactadas pela SÁBADO
o que é "certo" está
a tornar-se "raro". "As pessoas
estão cada vez mais fechadas. Alguém
pode ser roubado num comboio cheio e ninguém
faz nada. Não ajudam nem testemunham.
Abílio
Tarrinha professor do ensino secundário,
não conseguiu convencer ninguém
a ajudá-lo quando foi assaltado. Em Março
passado, numa paragem em Aveiro foi agredido
e roubado por três jovens. Ficou estendido
no chão, com os óculos partidos
e a olhar para um autocarro cheio de possíveis
testemunhas. "Ninguém me ajudou",
lamenta. "Toda a gente sabe quem era um
dos assaltantes. O comandante da PSP e o bispo
de Aveiro fizeram apelos nos jornais, mas não
há testemunhas para depor." Desde
então, Abílio já viu duas
vezes aquele que todos dizem ser o assaltante.
"Foi na esquadra, nas sessões de
reconhecimento. Mas não posso garantir,
porque vi apenas que era um rapaz, alto e branco.
Há milhares de pessoas assim." E
como não tem mais ninguém a apoiá-lo,
resolveu não acusar nenhum dos possíveis
criminosos. "Já não me preocupa
o roubo, mas é complicado esquecer a
cara das pessoas que iam no autocarro.
A omissão
de auxílio pode ser “contagiosa",
explica o psicólogo
Vasco Soares. "As pessoas
têm medo de reagir e de acabarem sozinhas
perante os agressores." Dois anos antes
de ser roubado, Abílio viu uma polícia
ser atacada por outra mulher. De imediato, interveio
e imobilizou a agressora. Sem hesitar. |